linhas gerais da distinção feita por Kant entre os ajuizamentos que concernem respectivamente ao agradável, ao bom e ao belo.
A analítica do belo kantiana é uma análise subjetiva, ou seja, trata-se da análise de um sujeito. O juízo de conhecimento estético que percorre da experiência do Belo ou Não Belo, ou seja, a experiência estética, é relacionada ao seu “sentimento” de prazer ou desprazer. Observação: na tipologia de Kant “sensação” é a representação objetiva dos sentidos, que diz respeito ao corpo, diferente de “sentimento”, que é subjetiva e que diz respeito à alma .
O juízo de gosto não é dado pelo juízo de conhecimento, não é lógico e sim estético. A afirmação “Os quadros de Picasso são belos, logo eu gosto deste quadro de Picasso” não vale como juízo de gosto, portanto.
Uma cadeira, por exemplo, normalmente você reconhece como sendo uma cadeira. Relacionar-se com uma cadeira não seria uma experiência estética, a não ser que você tivesse ficado em coma por um longo tempo e tivesse um prazer enorme em perceber que aquilo é uma cadeira, mas normalmente a cadeira é reconhecível como cadeira, uma espécie de termo/categoria/representação, que se dá através do seu juízo de conhecimento. Algo diverso da representação diante de um sujeito que é consciente da sua sensação de comprazimento ( do alemão Wohlgefallen - algo que satisfaz, que é plenamente determinado de sentido, comprazimento, satisfação, agrado, deleite, gozo, aprovação ). Representação é tudo aquilo que se coloca diante de mim. Algumas mais do lado do sensível outras mais do lado do intelecto.
Para Kant a experiência estética está ligado ao sujeito e seu sentimento de vida. O prazer estético está relacionado à experimentar a própria vida. O lugar da graça de experimentar o mundo com todas as cores, formas e sons que ele tem. Uma predisposição de ânimo, ou seja um “sentimento de vida”; o que é estar vivo como um homem por excelência; o encantamento que nos liga à arte, à natureza, que faz a vida valer a pena (segundo Nietzche, a vida só se justifica esteticamente). Sentimento que poderia ser explicado pela frase “ que bom que eu sobrevivi para ver isto” - tomando como exemplo uma pessoa que foi torturada e sobreviveu e dá um depoimento, inesperadamente isento de ressentimentos, como “ eu gosto de viver, eu gosto de ir à praia, de vento, dos passarinhos…”. Este “sentimento de vida” seria o reconhecimento de que alguma coisa que está acontecendo não é qualquer coisa.
O comprazimento é algo que se dá através da sua imaginação, que é a faculdade formadora da forma ( em alemão Einbildungskraft ( imagem/forma/formação). Todo múltiplo sensível que toma forma em mim diz respeito à minha imaginação. É o conjunto de estímulos sensíveis que se apresentam em mim de forma unificada. A imagem que se forma em mim. Ligada ao plano sensível. A imagem que se forma também pode ser difusa, ser só no plano das sensações. Já alguns sentimentos são ligados ao racional “ eu não gosto disto que você fez”- é um comentário moral. Posso ter prazer e desprazer que não são meramente estéticos.
A experiência do belo se dá a partir da faculdade da “imaginação” do sujeito em livre jogo com seu entendimento. É da ordem do sensível junto com o reflexivo.
Kant afirma que a atestação do belo como belo (experiência sensível e intelectual ao mesmo tempo), liga-se à experiência de um prazer desinteressado ( ohne Interesse ), diferenciado de outros dois tipos de prazer, que, segundo ele, estariam ligados a interesse, que seriam o prazer ligado ao que é agradável ( experiência meramente sensível ) e aquele associado ao bom útil ou bom moral ( experiência meramente conceitual/reflexiva). “Estar interessado em algo” significa antever prazer de alguma espécie associado à existência, à posse, ao contato, à experiência ou ao acontecimento de alguma coisa.
Para Kant o comprazimento no belo é desinteressado. Só acontece se eu deixar que o múltiplo sensível de suas formas, etc…me deixe ter prazer…Não posso deixar que outros componentes daquele “troço” afetem minha experiência. Eu tenho que isolar.
A experiência desinteressada tem que se sobressair em relação à outras experiências. Causar prazer sem que você esteja interessado em ter prazer. Ser um elemento surpresa. É necessário um deixar-ser, um deixar-aparecer…a experiência da gratuidade.
A experiência do belo é meramente subjetiva, mas nós podemos pensar como partilhar, pensar em como objetivar, porque você presume que há uma objetividade no prazer que você está sentindo, você acha que o outro pode ter o mesmo prazer que você. Uma determinada experiência te dá tamanho prazer então é possível compartilhá-la. Esta seria uma das características do ajuizamento do belo.
Da Vinci disse algo como “Arte é coisa mental”, ou seja é uma experiência sensorial, mas intelectual / reflexiva ao mesmo tempo. Existem prazeres que não são puras sensações.
O sujeito poderia viver a experiência estética do “belo” ao degustar um vinho, por exemplo, poderia dizer, este é um “ belo vinho”, por sua opacidade, transparência, viscosidade… como sendo algo que cria memória… pelo sabor que fica…tornando-se uma experiência reflexiva além de sensorial. E aí você diz para outra pessoa “ toma este vinho que vai te dar prazer…”, você tem desejo de compartilhar a sua experiência, por ser uma coisa diferenciada. Ao tomar este “belo vinho” eu posso ter um prazer desinteressado, ficar apenas focado em unir as múltiplas sensações em mim, desfrutar do prazer de um determinado conjunto de notas gustativas sobre mim…é diferente de alguém que bebe um vinho com o interesse em “tomar um porre”. Cabe observar que só se pode dar a comida a chance de representar a experiência estética quando se está sem fome.
Causar é diferente de favorecer. Você pode favorecer a experiência estética, mas nunca poderá causar. A experiência de se tomar uma coca-cola ou ter vontade de ouvir tal música, porque é animada… é da ordem do “agradável”, porque eu tenho como repetir a experiência do agrado, tenho como causar a mesma sensação.
No genuíno ajuizamento de algo como belo não pode influir nenhum interesse, quer dizer que o prazer a ele ligado não pode ser obtido por nenhum apetite prévio pela presentificação do objeto. O prazer deve ser consequência gratuita de uma disponibilidade contemplativa, fruto de uma surpresa de um livre favor. Não importa por isto se a existência do objeto traz consigo coisas moralmente reprováveis ou se me traz conforto moral, não importa se ele serve para algum fim exterior, pois não o busco para consumi-lo ou sentir prazer, apenas importa aquilo que tenho diante de mim, a aparência que ao ter a chance de ser contemplada desinteressadamente me traz prazer ou desprazer.
Exemplos de juízos em torno do belo: “gostei imensamente do filme Rashomon, do Kurosawa”, “amei a vista daqui de cima da Pedra da Gávea, é linda mesma estando a cidade tomada de prédios”…
O comprazimento no agradável é ligada ao interesse, a uma apetição. A sensação pode ser boa ou ruim e o sentimento está ligado ao prazer ( na tipologia Kantiana ) ou desprazer. A sensação da cor verde, sensação de frio/calor que pode ser agradável ou não. A experiência do que é agradável é uma experiência sensível e ponto. Exemplos de juízos em torno do agradável: “gosto de comidas temperadas”, “adoro amarelo”, “aprecio melodias suaves”…
Já a experiência do que é bom, útil ou moralmente, é conceitual/reflexiva e está também ligada a algum tipo de interesse. Exemplos de juízos em torno do bom útil: “não gosto de horário de verão”, “não gosto de coisas mal feitas”, “gosto mais deste quadro porque é um Picasso, porque é mais valioso e desejado…”. Exemplos de juízos em torno do bom moral “aprovo sua honestidade”,“não gostei das suas atitudes na festa”,“não gosto deste quadro, porque seu autor era um canalha”. Existe aí também uma possível separação entre o que seria estético e o que seria ético.
A experiência do belo é como se fosse um “ponto de interrogação” que vagueia entre o reflexivo e o prazer sensorial, uma reflexividade contemplativa. Como se diante de um quadro eu ficasse tentando chegar a um conceito e justamente por não conseguir chegar a este conceito é que o objeto continua traduzindo outros mistérios, e eu fico vagando diante do que é este enigma, o quadro aparece para mim como um sentido, como uma inteligência, mas eu não consigo reduzir a um conceito. Para Georg Bracques, “em arte só uma coisa tem valor, o que não se pode explicar”. É indecifrável. Kant, no entanto, é escasso de exemplos de juízos de gosto em relação à arte, talvez ele esteja falando da experiência estética em relação à natureza. Pensando em exemplos de obras de arte contemporâneas que poderiam ser consideradas belas no sentido de tentar retomar a relação com a natureza, poderíamos citar os pára-raios no deserto de Walter De Maria ou o Spiral Jetty de Robert Smithson ou até Richard Long trazendo a natureza para dentro da galeria e compondo esculturas com as disposições das pedras no chão. Cabe lembrar também que nem toda arte é bela, pode ser sublime ou só gerar um tipo de prazer. E que o belo aqui não significa que não seja feio ou que siga qualquer forma de padronização formal. Uma carranca ou uma máscara africana pode ser considerada feia e ser bela. O que importa é a forma como a coisa se apresenta em mim. A constelação das sensações e sentimentos que se dá em mim.
Segundo Clement Greenberg ( em entrevista a Ann Hindry em 17.05.1993 ) in Clement Greenberg e o Debate Crítico, Rio de Janeiro, Funarte/Zahar,1997: “pode-se olhar a arte e não ter experiência estética, como se pode ouvir música com o pensamento em outras coisa…pode-se assim simplesmente passar diante de um quadro ou escultura. Mas quando se faz o ligeiro esforço de centrar a atenção no que se tem diante de si, então se gosta ou não se gosta. O Juízo estético é isso. A Experiência intuitiva que leva a ele não é buscada. Não decidimos se vamos gostar ou deixar de gostar… não temos poder de decisão… Acontece de amigos queridos nos mostrarem uma obra de arte de que, desolados, descobrimos não gostar, ou , ao contrário, de gostarmos a contragosto de obras que uma pessoa que destestamos nos mostrou. A experiência estética é intuitiva, não tem nada a ver com lógica. Evidentemente, muitos fatores externos, não estéticos, entram em jogo. Trata-se então de trabalhar sobre si mesmo, não é tão difícil assim.”
Sobre o desejo de compartilhamento do que é belo, ele diz na mesma entrevista : “ …o gosto é para todo mundo. Ademais não comunico o meu gosto, mas o processo desencadeado por ele. Não ajo de maneira diferente por ser crítico, mas, a partir do momento em que escrevo e proponho resultados de meu gosto em escala social, busco evidentemente o assentimento. Kant fala dessa busca de assentimento na “ Crítica do Juízo”. Não digo: “ Concordem, porque sou eu que estou dizendo”, e sim: “ Olhem a arte de que estou falando e vejam se estão ou não de acordo comigo”.As palavras não bastam, é preciso olhar. Já me aconteceu de mudar de opinião, mas nunca por causa da retórica de alguém, mas porque fui rever alguma coisa após ter tomado conhecimento do juízo de alguém cujo gosto eu respeitava, que era capaz de ver (…).”
Quando algo é julgado belo o espectador tende a universalizar o seu juízo,o sujeito pretende que o outro pode usufruir do mesmo prazer que ele, mas dificilmente perderá tempo tentando convencer uma pessoa que banho morno é mais agradável que banho quente. É diferente também do que se sucede com o que é bom para a saúde, neste caso, o sujeito deseja que o outro compreenda os maleficios de determinada coisa.
Outra conclusão que Kant chega em relação à comparação entre o que é belo,bom ou agradável. Agradável significa aquilo que deleita e vale também para animais irracionais e pode se dar por uma inclinação. Beleza significa aquilo que apraz e serve somente para os homens,naturezas animais dotadas de razão e se dá através de um favor ou favorecimento. Bom é aquilo que é aprovado e vale para todo ente racional em geral e se dá por um respeito, mediante a lei da razão. Entre todos estes modos de satisfação, portanto, a do gosto pelo belo é a única satisfação desinteressada e livre. Parece que somos compelidos ao prazer ou desprazer ora pela nossa natureza animal, instintivamente, ora pela nossa natureza racional. No caso do belo, a experiência do prazer se ligaria a algo que poderíamos livremente escolher, sem contrariar necessidades animais ou racionais.
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