---Levanta a cabeça. Se olha. E se eu morrer amanhã?De susto,de bala ou
vício. De bala,de bala, de bala...um medo tão grande da loucura
humana,uma falta de discernimento total entre o que é dedução e o que
é imaginação.Porque me imagino morrendo todos os dias.Tenho medo todos
os dias.Hoje,isto é hoje.No passado eu não tinha medo de nada,só de
dor de amor mesmo.E foi pela dor de amor que eu passei a ter medo de
tudo.não.Foi trauma.É pânico.Martelam lá fora,martelam de
madrugada.eles têm autorização da prefeitura. A cidade está em obras.
A cidade está na moda.Eu não.Só com a minha filha.Ela me vê e me
beija.Ela aprendeu a beijar.Ela diz “eu tô com medo”,porque ela
aprendeu numa historinha que a aranha era solitária,porque todos
tinham medo dela,mas no final da história a aranha convida todos para
uma festa na teia dela e ninguém mais fica com medo dela.Eu
busco,"escaravalho",rascunho meus medos,desafio meus medos e quase
morro de susto todos os dias...Vício?Só o álcool,mas já passou.Bala,se
vier na minha direção,espero não ficar apática vendo a morte chegar.Se
chegar,que eu vá com óbolos para pagar ao caronte,para fazer a
travessia...que a minha alma viva mais um pouco...
Voltando.Começar voltando.Eu,o meu quarto branco.Uma cama,uma
escrivaninha.Nem computador eu tinha. Pouca gente tinha.Eu, a minha
cama, a escrivaninha,a cadeira,o armário. Eu e as coisas que eu tinha
para fazer. E a minha família e os meus amigos. Leveza. Eu, a terra
batida sob meus pés, a parte de baixo do biquíni,só. Uma bicicleta.
Vento. Sal na pele. Calor. Liberdade.Amor e liberdade.Só.Não voltar de
hoje até o dia do meu nascimento,ou do meu concebimento,mas ir até lá
e de lá chegar até aqui,para reconhecer,para me conhecer,para resgatar
algo que foi perdido pelo caminho.Nasci.
Eu,a minha mão no tapete da sala,pegando no sofá para ficar em
pé,abandonada na praia embaixo de uma toalha.Pele branca,cabelos
brancos. Eu nasci de cabelos brancos,quase albina,crescendo num sol de
sal,num sol esturricante,branca de sal na pele,caminhava por salinas
de água quente e fedor,meu pé afundava.nadava numa lagoa escura e o
fundo dava medo...tinha medo de tubarão,mas na lagoa só tinha mesmo
tainha.Tainha é considerado um peixe barato,um peixe fácil,a barata do
mar...eu comia barata,eu cresci comendo barata...a barata do
mar...quando a gente ia passear,passava por dentro de uma favela,via
senhoras lavando roupa,nenéns pelados brincando no esgoto,para chegar
à propriedade do Roberto Marinho,onde tinha uma praia bonita.Lá a
gente podia esquiar pelado e brincar de lagoa azul...eu me imaginava a
Brooke Shields beijando aquele menino embaixo d’água...lá tinham
conchas ainda grudadas no seu respectivo par,conchas rosas
bebê,grandes conchas rosa bebê,ainda grudadas no seu respectivo
par.Tudo parecia germinar dali,o magma terrestre parecia vir dali,toda
a concepção do mundo parecia vir dali,o mundo parecia ser só
aquilo...o sal,o vento,a água no corpo,a areia,as conchas,uma mata
abundante e uns cabritos soltos...uns bodes...o peito ainda sem a
parte de cima do biquíni,o pé grosso de quem anda muito descalço...e
as gaivotas que vinham dormir a noite sob às árvores da ilha e
transformavam o verde da copa num imenso tapete
branco,suspenso,suspenso...não imaginava ladrão,não imaginava nem a
morte,mesmo convivendo com cadáveres de peixes à beira d’água...aquilo
parecia tão natural,que não era questionado...ocupar-se de ações,como
passar os dedos sobre alguma superfície lisa ou saltitar com as mãos
num muro áspero,pedalar para atingir pequenos objetivos,subir e descer
o morro.subir a ladeira carregando a bicicleta,para descer no
embalo,ter medo de cair e cair,ter medo de cair e não cair,viciar.
Parece que eu pulei umas partes...
Pensei em beijo. Na paixão pelo primo. No sangue do primo, na ajuda,
em ficar sozinha com ele, no topo do morro, pegar o tecido que
envolvia a espuma do guidon da bicicleta para estancar o sangue dele.
A vontade de beijá-lo, a bulinação na bicicleta...E depois quando a
gente se reencontrou embaixo do piano e transou.
E hoje?Importa o hoje?Hoje tudo é difícil.Acordar,planejar-se,vestir a
roupa,o sapato,arrumar a casa,a cabeça,comer bem,manter o
otimismo,precisar,pular da cama diariamente,trabalhar,trabalhar...